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Futuro

Brasa que arde em mar tempera a carne, sal que corrói também preserva o rosto; hoje me banha um pranto que já não parte, amanhã será outro do mesmo desgosto. Chove em degredo a triste essência, de prender ao solitário sonho dissociado; da finitude finita da bela complacência. Vida só, de tanto mastigar o próprio fado.

A Alta Fantasia e o Espelho Colonizado: Uma Reflexão Sobre Cultura Engessada e Produção Literária no Brasil

Em um país cuja fundação simbólica foi o estupro, a escravização e a catequese, pensar sobre a produção cultural — e especificamente sobre a literatura fantástica — é um assunto polêmico,  divisor de águas em terras aprisionadas em uma mente conservadora, muitas vezes estetizada, mas raramente cicatrizada. O Brasil não apenas foi colonizado em sua terra, mas, mais profundamente, em seu imaginário. E talvez seja neste imaginário que se encontre o cerne da questão: por que a alta fantasia nacional não floresce com a mesma força com que florescem as importações do Norte Global? A resposta é multifacetada, mas a primeira camada é simples: o brasileiro médio ainda carrega, consciente ou inconscientemente, o peso de uma mente colonizada. Há um impulso automático, quase reflexo, de crer que o que vem de fora é melhor. Trata-se de uma internalização de inferioridade cultural, nutrida por séculos de dominação simbólica e material. A consequência direta disso é a percepção de que a literatur...

Cento e Vinte Passos Na Penumbra - Capítulo 3

Willian estava se recuperando ainda, mas já tinha planos para o futuro. Sirien havia levado-o a caneta tinteiro depois de Willian aguardar algumas horas em vão. Provavelmente o kalaschiano havia se esquecido ou se ocupado com algo mais importante no momento. Quando trouxera o objeto, recomendou que Willian fosse para a biblioteca pois lá esperava-o somente o silêncio e, embora Willian tenha disfarçado, estava incomodado com a acústica de seu quarto, ouvia os passos de quem andava acima e os sons do festejo de kach’de.  Agora ele puxava uma cadeira aveludada e sentava-se à mesa, redonda e de um tom mais escuro do que ébano. Tinha consigo seu caderno encourado, onde esboçaria uma carta e algumas folhas para a versão definitiva, assumindo que ocorrerão erros. Ele suspirou sonoramente quando percebeu que não sabia como começar a carta. Caríssima coordenação e filiação de pesquisa da Universidade de Lexov, ele começou a escrever, mas, depois de observar por alguns segundos e reler, desi...

Soneto de Anelo e Saudade

Já não faz horas, e no meu silêncio, Eu noto a ausência tua em meu morar. Teu peso é luz no peito em desalento, Um eflúvio cruel a me habitar. Leva contigo a fúria do amor, E deixa-me esta paz que mal sossega. Não resta mais o medo nem o horror, Mas só o tempo em nós, que se renega. Rabiscos vão na folha ameaçada, Em rima orbital, prece que se lança, Fragmento de uma vida cobiçada, De quinze em quinze, cresce a esperança. Da poeira imóvel, da alma tocada, Do amor que me oferece tua dança. Ezequiel Guimarães - 2025

Cento e Vinte Passos na Penumbra - Capítulo 2

A janela estava fechada, porém os ventos fortes batiam a todo momento em seu vidro e faziam sons irritantes da superfície vitral contra as grades de ferro. Willian puxou as cobertas até o queixo, mesmo que não sentisse frio. Não conseguia dormir mesmo que ainda estivesse cansado. Ele havia dormido por tempo demais quando chegou ao templo, era natural que agora precisasse se cansar um pouco mais para que o cansaço evidente surtisse efeito. Virou de um lado para o outro tentando encontrar uma posição que o acalmasse, porém os movimentos doíam e só o recordavam da praga que carregava na pele. Atentou os ouvidos. Havia um som melodioso no fundo, uma música. Ele pôde ouvir o som dos tambores somente, mas eram sons coordenados, evidenciavam um ritmo. Willian decidiu se levantar, empurrando as cobertas para longe e erguendo com um pouco de dificuldade. Ele se sentou à beira da cama por alguns segundos, respirando fundo até que a dor na pele e músculos aliviasse. Agora acordado, o som dos tamb...

Cento e Vinte Passos na Penumbra - Capítulo 1

O cheiro estava impregnado pelo quarto inteiro, forte e ardido. Parecia incenso, talvez ervas queimadas, mas não soube reconhecer do que se tratava aquelas fragrâncias tão amargas, porém ledoras do alívio. E enquanto isso, seus olhos se abriram lentamente, captando, de início, somente a luz azulada do céu de amanhecer, ainda escuro, mas em Kalasch os dias não eram claros. A luz atravessava uma cortina espessa, num tom marrom escuro e seu tecido balançava lentamente devido à brisa gélida que atravessava as grades da janela pela pequena abertura do vidro, que permanecia quase fechado visto que o hóspede ainda não havia acordado plenamente, suscetível ao frio e ao ardido da topaíta, embora naquele dia, a topaíta fosse menos espessa. Willian finalmente acordou, mexendo de leve os dedos das mãos, antes formigantes. Ele respirou fundo, como se acordasse do sono profundo. Ergueu as pálpebras e contemplou um sacerdote acendendo velas de perfume adocicado, mas ainda de essência ardida. O sacerd...

Cento e Vinte Passos na Penumbra - Prólogo

A noite caiu feito uma bigorna lançada do céu, rápida e implacável. A sensação era de que Kalasch era sempre mais escura e seu anoitecer era ainda mais rápido do que em Vulcânia por algum motivo. A luz escassa do escurecer do inverno duplo-solar era arroxeada, com tons mais puxados para o azul, o que realçava a neve, pintando a neve de um brilho frio, como vidro rachado refletindo o céu, a neblina e os ventos cortantes e gélidos que sibilavam preces em seus ouvidos como cânticos religiosos e infantis. Havia uma melodia naquela ventania, algo cruel e insistente que se enroscava em seus ouvidos. Em Kalasch, as coisas eram sempre mais violentas, embora o mineral ácido – topaíta, era como chamavam – não fosse tão presente na atmosfera e os ventos não causassem ardência e o peso do chumbo nos pulmões, Kalasch ainda era conhecida como a terra dos selvagens, de uma nação dividida entre gangues. Além das gangues e do frio, surgia mais uma ameaça: Kalasch era permeada por mnyesas, criaturas que...