Cento e Vinte Passos Na Penumbra - Capítulo 3
Willian estava se recuperando ainda, mas já tinha planos para o futuro. Sirien havia levado-o a caneta tinteiro depois de Willian aguardar algumas horas em vão. Provavelmente o kalaschiano havia se esquecido ou se ocupado com algo mais importante no momento. Quando trouxera o objeto, recomendou que Willian fosse para a biblioteca pois lá esperava-o somente o silêncio e, embora Willian tenha disfarçado, estava incomodado com a acústica de seu quarto, ouvia os passos de quem andava acima e os sons do festejo de kach’de.
Agora ele puxava uma cadeira aveludada e sentava-se à mesa, redonda e de um tom mais escuro do que ébano. Tinha consigo seu caderno encourado, onde esboçaria uma carta e algumas folhas para a versão definitiva, assumindo que ocorrerão erros. Ele suspirou sonoramente quando percebeu que não sabia como começar a carta.
Caríssima coordenação e filiação de pesquisa da Universidade de Lexov, ele começou a escrever, mas, depois de observar por alguns segundos e reler, desistiu, riscando a frase e escrevendo acima: Digníssima reitoria de pesquisa da Universidade de Lexov.
Como continuar? Ele não sabia. Olhou ao redor na biblioteca buscando alguma ideia. Voltou a olhar fixamente para o papel, buscava alguma luz, uma introspecção. As palavras começavam a se formar em sua mente, prestes a serem distribuídas no papel, quando de abrupto Willian se desconcentrou ao ver três sacerdotes adentrarem a pequena biblioteca. Seus olhos recaíram de imediato em Ofélio e sua ausência de visão opaca e turva.
Os outros dois sacerdotes guiaram o rapaz até a mesa em que Willian jazia escrevendo. Um sacerdote sussurrou “Licença” timidamente e puxou a cadeira, ajudando Ofélio a se sentar. Seus olhos fixos no nada permearam o arredor com uma áurea melancólica, mas ainda cheia de fé pois o jovem sacerdote carregava um sorriso tímido em suas feições.
Willian reparou nos sacerdotes conversando em algum idioma de Kalasch no outro lado da biblioteca. Eles andavam próximos às estantes e pegavam livros conforme a conversa fluía, um deles carregando vários deles enquanto o outro pegava mais um e outro e os colocava sob a pilha carregada.
O mais baixo parecia ter reclamado de algo quando Ofélio interviu, também no idioma kalaschiano. Os dois pareceram incrédulos ou surpresos, Willian não soube discernir. Eles, fixos onde estavam, olharam para Ofélio, mesmo que ele não retribuísse o olhar. Ofélio, por sua vez, acrescentou: “O viajante pode opinar se estou certo ou errado, acredito eu.”, ele brincou, desta vez no idioma comum, a voz era sedosa e macia.
Willian se empertigou na cadeira. “Hm?”, ele instigou-os a dizerem o que ocorria, talvez não soubessem que ele não falava o idioma. Além disso, Willian parecia compenetrado na carta e mesmo que falasse o idioma não processaria o que diziam.
O sacerdote mais alto, que pegava os livros nas estantes, deu um passo para frente e disse: “Estávamos debatendo. Temos uma sacerdotisa no templo que tem heranças vulcanianas.”
Willian cerrou a sobrancelha. “E daí?”
Ofélio suspirou com aquele ar moderado seu, mas dessa vez com um pouco de apreensão, como se dissesse aquelas clássicas frases que Willian ouvia da governanta de sua casa, se eu não o fizer, ninguém o fará. Ele tamborilava os dedos sobre a mesa de madeira. “Os dois estavam debatendo se cinzentos são selvagens ou não.”, Ofélio dissera, “Logo pensei em você, pois, bem, soube de sua herança.”, ele disse, o leve tom de deboche.
Willian cerrou ainda mais a sobrancelha. “Como sabe que eu sou o viajante que está pensando?”, ele perguntou, sem papas na língua.
“Sou cego. Não uma peça de madeira.”
Ácido. Willian se empertigou ainda mais. “Você…”, ele começou, esperando que Ofélio completasse sua frase para não ter que revelar sua teoria: Ofélio era um sacerdote com algum tipo de premonição graças a seu papel no templo. Bem, Willian não entendia muito de religião.
“Sou fenomenante, bobinho.”, ele disse, dando um sorriso com seus lábios compridos.
O cientista arregalou os olhos de imediato. Sempre ouvira falar de fenomenantes mas nunca havia os visto, de fato, mesmo sendo um jovem rico e crescido entre ricos. Ele quase saltou na cadeira, “Isso é sério?”, questionou.
“Seríssimo.”
“Não acredito.”, Willian resmungou, incrédulo. Sentiu o ímpeto de dizer que só acreditaria quando visse, mas se conteve pois não queria soar como se o desafiasse em seu primeiro encontro. Ou melhor, terceiro, mas Ofélio não sabia que Willian esteve nos outros. Ou era o que Willian pensava.
Ofélio deu risadinhas e respondeu: “Acreditando ou não, cá estou eu.” Depois ele apoiou o cotovelo na mesa e entrelaçou seu queixo na mão. “Não vai responder à pergunta?”
“Que pergunta?”, questionou, havia se dispersado olhando os papéis para a carta, refletindo sobre o que diria, ou sobre quais palavras usaria. Sua preocupação era outra no momento.
Ofélio suspirou. “Minha aposta é que não, mas… Cinzentos são selvagens mesmo ou não?”, ele indagou.
“Lógico que não, eles têm a mesma massa cinzenta que habita o cérebro minúsculo de vocês”, Willian protestou em resmungos enquanto massageava a têmpora em busca de uma solução para a carta. “Se é que há cérebro, diante de tamanha estupidez expressa.”
Ofélio sorriu, seus olhos cegos ficaram fixos em Willian quando ele tirou satisfação com os outros dois sacerdotes. “Viram só?”, ele dizia enquanto os dois voltaram a pegar os livros pelas estantes e o mais baixo se equilibrava com a pilha.
“Diga-me, meritíssimo cientista,” começou o mais alto, se aproximando da mesa e pousando a mão no ombro de Ofélio. “A qual inovação científica devo atribuir-lhe o nome?” Ele provocava, o que não surpreendia Willian, já que ele tinha esse direito após ter suas capacidades cerebrais questionadas.
Willian olhou-o de canto, um olhar de minuto que logo voltou para a folha repleta de rabiscos. “Antes de tudo, meritíssimo é um pronome de tratamento designado a juízes ou reitores, não cientistas. Aos cientistas eu atribuiria ilustres, excelentíssimos ou então magnânimos.” Disse, então dando um sorriso preguiçoso e deixando a cabeça cair alguns graus.
“Oh, vejo que domina para além dos conhecimentos da natureza, portanto.”, o sacerdote deu uma risada, virando-se de leve para observar o amigo tentando deixar a pilha de livros em cima de um pequeno gaveteiro.
Ofélio deu um tapinha em sua mão. “Pare com isso, Kèg. Está assustando nosso hóspede.” Falou, sua voz ainda era estranhamente natural e espontânea de um jeito articulado. “Diga-me Willian…”
Então ouviram o som dos livros da pilha caindo em um estalo dos braços do sacerdote, que se empenhava em recolhê-los do chão enquanto o silêncio tomou a sala.
Ofélio havia virado a cabeça em direção ao som, agora virando a cabeça novamente para Willian. Foi então que o cientista se deu conta de que Ofélio sabia sim onde estava posicionado cada um. Talvez fosse a fenomenância, ele pensava. Mas provavelmente era só o fato que Ofélio ressaltou, ele era cego, não uma batata.
“Como dizia, Willian, no que está trabalhando agora?”, ele indagou.
Kèg andou até os livros no chão e ajudou o amigo a recolhê-los. “Seria uma honra ao templo acolher sua pesquisa”, comentou.
“Estou tentando escrever uma carta à reitoria de pesquisa da Universidade de Lexov.” Willian explicou. “Mas estou sem ideias de como começar.”
Kèg sorriu de maneira preguiçosa. “Pensei que o magnânimo tivesse domínio das palavras” provocou.
Ofélio deu outra batida na mão de Kèg. Willian conteve o riso.
“Prefiro a prática”, ele respondeu.
“Bem,” começou Ofélio, “meu conselho é que não diga para somente aceitarem a proposta. Escreva para que leiam, compreendam e aceitem a proposta, por fim. A comunicação é uma arte.”
Willian pensou que se expressar ideias em palavras era arte, ele com certeza não era artista. Preferia muito mais as fórmulas e a exatidão do que o subjetivo. E geralmente a comunicação implica no subjetivo, é impossível não transbordar o indivíduo em suas palavras e gestos. Willian não tinha muita paciência para as entrelinhas, precisava de certezas e respostas únicas assim como é inadmissível que uma soma dê dois resultados. Mesmo pensando nisso, preferiu não proferir a ideia.
“Certo, mas como você começaria uma carta?” averiguou Willian. “Como começar?”
Ofélio assentiu, pensando, “Hum, começos sempre são os mais difíceis. Eu começaria com venho por meio desta carta.”
“Certo. Informar? Demonstrar? Não…”, Willian continuou escrevendo a carta.
Kèg andou até Willian, parando às suas costas e observando o cientista esboçar o primeiro parágrafo da carta.
“Digníssima reitoria de pesquisa da Universidade de Lexov,” O sacerdote começou a ler em voz alta, deixando Willian levemente envergonhado, embora jamais admitisse. Permitir que alguém lesse textos seus era algo muito íntimo, ao menos para ele. “Venho solicitar, por meio desta, vosso olhar atento sobre a investigação de suma importância para as sociedades do sul de Dorthland. O tema o qual me proponho a investigar esta atrelado ao estudo das mnyesas e seus mecanismos de secreção e cicatrização, criaturas temidas, porém cuja biologia poderá, estou convicto, oferecer novos caminhos para o alívio de dores e enfermidades que hoje desafiam nossos mais avançados recursos.” Lia, pausadamente, dando tempo o suficiente para que Willian continuasse a escrever.
Então o cientista se empertigou na cadeira novamente. O segundo parágrafo precisava expor suas motivações para a pesquisa tema solicitação de contato presencial para que discutissem os recursos utilizados na pesquisa. Willian lambeu os lábios e voltou a escrever.
Então, depois que terminou o segundo parágrafo, pegou a folha e a entregou a Kèg, que se pôs a ler mais uma vez. “Minha solicitação transcende a atmosfera científica, circundando os conhecimentos e direitos humanos uma vez que minha teoria fomenta-se a partir de dados que permitem uma hipótese: embora letais, mnyesas carregam substâncias capazes de remediar feridas provocadas por ambientes hostis como os da mineração. Dito isso, peço, encarecidamente, por uma sessão em que havemos de discutir as circunstâncias e recursos da pesquisa. Atenciosamente, Willian Veldorf.”
O sacerdote que antes guardava os livros havia se sentado ao lado de Ofélio, parecia impressionado enquanto o rapaz ao lado sorria e aplaudia. “Muito bem”, Ofélio dissera, “É ou não é um artista?”
Willian piscou algumas vezes, não sabia como lidar com o elogio. Ele sorriu de maneira tímida e olhou para Kèg e depois para Ofélio. “Vou enviar essa carta pela manhã”, ele dissera. “Depois só resta esperar.”, falou, então dando um pulo da cadeira ao ouvir o estrondo dos sinos indicando o amanhecer.
Willian não seria mais idiota, se aquele som indicava o amanhecer, significava que os três sacerdotes que jaziam naquele cômodo não poderiam mais proferir uma palavra sequer. Eles assentiram para o cientista e se retiraram do cômodo, Ofélio ainda sorridente.
Agora precisava encontrar algum mensageiro. Saiu da biblioteca e zarpou pelos corredores do templo em busca de Sirien enquanto seu corpo começava a desligar. Ele precisava dormir, imaginava ter dormido menos que uma hora.
Willian estava com dor, como sempre, mas havia algo naquela madrugada passada com os sacerdotes que aliviou um pouco aquela sensação, até aquele sentimento, talvez. Aliviar poderia ser uma palavra forte, mas Willian estava certo de que se distanciar um pouco da solidão havia distanciado seu foco da dor. Ao menos por alguns minutos.
Willian havia entregado a carta a um mensageiro do templo fazia alguns minutos. Ele estava andando pelo templo a caminho de seu quarto e estaria mentindo se dissesse que não se perdera em sua jornada. Ele olhou ao arredor em busca de alguma pista de onde estava quando seus olhos recaíram em um vitral no fundo de uma sala que parecia ser designada a orações. Haviam bancos compridos enfileirados e um palanque abaixo do enorme vitral, onde jazia uma mesinha alta, provavelmente do sacerdote que conduziria a oração, tingidos pela luz colorida que atravessava o vitral no amanhecer.
O vitral tinha os mesmos tons dos outros que vira, azuis claros e escuros até os vermelhos, vinhos e carmesins, além de alguns translúcidos esbranquiçados. Compunham a imagem de uma mulher com as mãos em concha de onde escorria água de forma cerimonial. Abaixo, onde caía a água, jazia uma criança de cabelos iguais aos da mulher, completamente albinos. Willian encarou o vitral por alguns segundos, admirando a luz que tingia o salão abobadado.
Sentiu uma palma pousar em seu ombro, quente e pesada. Willian se virou de abrupto e viu o mesmo sacerdote que regia o ritual do Kach'de da outra vez. O sacerdote olhou-o com uma amargura diferente do comum, como quem está exausto, porém ainda com um pouco de doçura expressa em seus olhos azuis cinzentos.
“O que faz aqui, jovem?” Indagou o sacerdote, sua voz era tão grave quanto se lembrava.
Willian olhou-o de relance. “Estou passeando pelo templo” ele disse, não queria dizer que estava perdido.
Willian, que era atento, percebeu que o sacerdote torceu o nariz. “Aqui não é lugar de passeio, jovem.”, o senhor disse, sua voz um pouco mais amargada. “Venha comigo. Vou arranjar algo para você fazer.”
O cientista não soube dizer se estava aliviado ou pesaroso com tal proposta. Não era o rapaz mais proativo que conhecia e por isso, embora não tivesse orgulho, ele reconhecia que não estava muito afim de fazer alguma tarefa. Willian preferia sentar-se em um dos bancos daquele salão e rabiscar seu caderno.
O sacerdote andou pelos corredores, Willian o seguindo como se fosse um garoto perdido, chegando a uma espécie de cozinha. Haviam alguns baldes e vasilhas preenchidos com água na pequena salinha. No fundo, havia uma pequena lareira e no extremo oposto um fogão a lenha aceso, o brilho do fogo era refletido pela pedra polida dos tijolos do piso, que tinham, graças ao calor que lhes era expelido, um tom amarronzado. O sacerdote andou até o canto da sala, onde os olhos de Willian ainda não tinham perpassado. Ali, jazia uma cristaleira preenchida por todos os tipos de vidrarias, ao lado do móvel, algumas estantes com pratos de porcelana desenhados, estampas de flores sob sua superfície branca opaca. O senhor pegou uma bandeja com várias taças de cristal por cima e pediu que Willian a segurasse, depois andando de volta ao canto e abrindo uma gaveta do móvel, pegou uma vareta de incenso e a pederneira, acendendo-o e deixando-o fincado na terra de um vaso grande de uma planta que Willian não reconheceu.
“Lave as taças com a água dos baldes”, falou, a voz pigarrenta. “Depois deixe-os sob a bancada e eu abençoá-los-ei.”
“Certo.”
Willian deixou a bandeja sob a bancada fosca e pegou uma taça de cristal. Ele não gostava da ideia de encostar em água pois teria que tirar as luvas, e consequentemente deixar os vermes visíveis, mesmo que eles fossem menos perceptíveis em sua mão. O problema é que ao lavar os copos era esperado que se erguesse as mangas e em seu braço a infecção era menos singela e mais bruta, agressiva, ali o relevo da praga era mais perceptível do que nas mãos, e sua pele adquiria um tom avermelhado ou arroxeado, dependendo dos pontos os quais se analisava.
Puxou as luvas e deixou-as na bancada, contando que o escuro daquela espécie de cozinha, iluminada por somente o fogo da lareira e do fogão a lenha, estivesse o favorecendo em sua condição. Ele pegou uma taça e a observou diante da luz alaranjada, seu vidro cristalino e cautelosamente ornamentado refletindo de leve, então se agachou e mergulhou-a na água.
A água não estava fria, mas não era sequer morna. O choque térmico percorreu o corpo de Willian num estalo ao sentir a água em sua pele. Fazia muito tempo desde a última vez que havia sentido aquela sensação úmida da água, talvez desde que se iniciou sua jornada para Lexov e, não era como se ele tivesse se esquecido de como era a sensação, mas, sim, estivesse surpreso que ainda conseguisse a sentir.
Ele lavava as taças com cuidado, ciente de que elas poderiam quebrar em suas mãos, deixava-as em uma segunda bandeja prateada na bancada e pegava então outra taça para lavar. Conforme ele secava mais uma e a pousava sob a bandeja, o senhor pegava o incenso e rodopiava sua fumaça na concavidade, falando preces em algum idioma kalaschiano que Willian desconhecia.
Sua mente divagava naquele trabalho repetitivo, erguia-se, pegava um copo, lavava-o, secava-o, deixava-o sobre a bandeja, pegava mais outro e o processo se repetia. Willian pensava no último jantar que tivera com a família Veldorf, ainda em Barithael, antes de sua partida. Sua família não o repudiava pela praga, mas nada continuou intocável depois da infecção, sua mãe olhava-o com aquele olhar de pena, sua avó o repreendia a cada movimento e a governanta parecia sentir nojo de tudo que Willian encostava. Willian sabia que se seu pai estivesse vivo as coisas seriam um pouco piores. Ou talvez Willian tivesse apanhado demais e por isso, impossibilitado de viajar até Vulcânia. Há males que vêm para o bem.
Sua última memória do pai não lhe era satisfatória. Quando o cientista de hoje ainda era criança, seu pai havia contraído tuberculose e fora afastado de sua família para evitar a contaminação. Ele morrera devido à sua doença e a última memória de Willian fora seu corpo pálido no caixão. Antes de sua morte, Willian só conseguia se lembrar do período sem a tuberculose como um detalhe.
Naquele jantar, sua mãe bebia vinho tinto em uma taça semelhante àquela que ele lavava, cristalina e meticulosa em detalhes, sentada à ponta da mesa comprida. Sua avó estava ao lado direito da mãe e Willian ao lado esquerdo, os dois de frente um para o outro.
O barulho das facas sobre a porcelana do prato era estridente e ecoante na sala, rompendo as fibras da carne e espalhando o molho vermelho oleoso.
“Você ainda pode mudar de ideia.”, sua mãe havia dito, quebrando o silêncio. Ela levou um pedaço pequeno da carne gordurosa aos lábios finos e envelhecidos. “Você pode ficar.”, ela disse.
O legado. Meu legado. Como conseguirei alcançar meu legado em Barithael?
“Não há vergonha em ficar, Willian”, dissera sua avó, a voz rouca e anciã.
Willian apertou os lábios. Mais cedo, sua mãe havia conversado com ele sobre, dizia que se ele não conseguia pensar nela e sua avó, que pensasse em Elias. Sua mãe não era a mais favorável ao que Willian tinha com o amigo, mas ela não estava em posição de questionar, afinal, Willian estava fadado a morrer doente e nenhuma mulher estaria disposta a se casar com um filho de tuberculoso, infectado por uma praga equatorial e não tão rico assim, pelo menos não tanto quanto seria necessário para comprar sua esposa de que ele não era nojento. O cientista sabia que sua mãe havia aceitado a morte do nome Veldorf, ele não acharia uma mulher para lhe dar herdeiros e morreria cedo, que deixasse-o aproveitar o pouco que restou de bom em sua ruína.
Willian voltou ao presente. Ele olhou para o balde de água enquanto esfregava a última taça no sabão e ervas. Quando terminou, enxugou a taça e a deixou sobre a bandeja. Ele olhou para o sacerdote à espera de uma nova ordem enquanto ele completava a última etapa da limpeza das taças.
O sacerdote terminou e pousou a mão sobre o ombro infectado de Willian, que recuou um pouco ao sentir a ardência contra o peso de sua palma.
O sacerdote deu um sorriso calmo e quase não notado. “Se sente mais leve?”, ele perguntou.
Willian pareceu confuso. Ele decidiu não responder, já que uma das respostas seria mentira e a outra ele não queria admitir.
“Bem, te encontrarei mais tarde para outras tarefas, sim?”, o sacerdote continuou. Ele esperou alguns segundos por uma resposta de Willian e não a obteve. “Bem, nos vemos mais tarde.” E então se retirou, deixando Willian à deriva.
O cientista olhou ao redor, seus olhos parando no reflexo do cristal da taça. O fogo dançava em sua superfície, junto à sua sombra opaca. Willian não entendera a última interação e não queria dizer que o sacerdote estava certo. Mas ele sentia aquilo. Sentia uma leveza, talvez fosse o incenso ou as ervas, talvez a água.
Quem sabe, o sacerdote poderia ser um manifestante assim como Ofélio e ter feito algo com ele.
Willian até poderia negar a se acreditar, mas aquela sensação boa que viera após lavar os copos era proeminente somente do ato de fazer algo pelo outro.
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