Cento e Vinte Passos na Penumbra - Prólogo
A noite caiu feito uma bigorna lançada do céu, rápida e implacável. A sensação era de que Kalasch era sempre mais escura e seu anoitecer era ainda mais rápido do que em Vulcânia por algum motivo. A luz escassa do escurecer do inverno duplo-solar era arroxeada, com tons mais puxados para o azul, o que realçava a neve, pintando a neve de um brilho frio, como vidro rachado refletindo o céu, a neblina e os ventos cortantes e gélidos que sibilavam preces em seus ouvidos como cânticos religiosos e infantis. Havia uma melodia naquela ventania, algo cruel e insistente que se enroscava em seus ouvidos. Em Kalasch, as coisas eram sempre mais violentas, embora o mineral ácido – topaíta, era como chamavam – não fosse tão presente na atmosfera e os ventos não causassem ardência e o peso do chumbo nos pulmões, Kalasch ainda era conhecida como a terra dos selvagens, de uma nação dividida entre gangues.
Além das gangues e do frio, surgia mais uma ameaça: Kalasch era permeada por mnyesas, criaturas que atacam no escuro e escutam até mesmo as batidas do coração humano, como diziam, embora nunca soubesse o quanto disso era lenda para aterrorizar crianças antes de dormir.
Suas vestes em trapos flutuavam no vento, puxadas em uma dança suave, enquanto o homem é seu cajado trilhavam o caminho em silêncio e debaixo da luz tênue de Althara. Seu rosto estava coberto por inteiro, com exceção dos olhos, repletos de flocos de neve impregnados nos cílios. Ele andava pela tempestade de neve, cada vez mais fraco, utilizando do cajado para se sustentar sob os pés, mas cada vez mais fraquejava. Estava anoitecendo e a luz se tornaria inexistente, não se via nenhuma vila ou cidade, nem mesmo uma ou outra construção solitária. E ele logo já perdia as esperanças, mas continuou andando contra o vento. Ele apertou o capuz mais próximo de sua pele, mas os tecidos escuros já estavam encharcados de neve derretida enquanto o mundo parecia borrar-se ao seu redor.
Um passo de cada vez, ele repetia em sua mente, ciente que qualquer mínimo som seria fatal. Era a única coisa que podia pensar, como um mantra que o instigava a continuar sua jornada.
Ele forçava os pés sob a neve endurecida, sentindo-a afundar consigo a cada passo, como se quisesse sugá-lo para as profundezas gélidas. Ele tremia e sua mão começava a fraquejar em segurar o cajado e ele sabia que o culpado não era somente o frio, mas a dor que irradiava seu corpo como uma lembrança dolorosa de sua condição. Uma memória impressa em seu corpo. Um eco. Uma ameaça.
Ele apertou os dedos contra o cajado, sentindo o peso da madeira afundando em suas palmas dormentes. Ele sabia que não deveria estar ali, sabia que qualquer um de Kalasch que o visse naquele estado o veria como um intruso, um estrangeiro. Um parasita.
Já havia andado demais para desistir; chegaria a algum lugar antes que morresse pois se recusava a desistir tão próximo do destino almejado. Olhou ao redor e somente viu as enormes planícies de neve pálida, mas continuou seguindo em frente, desamparado.
A cada passo, sua mente divagava de volta para as memórias de Vulcânia, aos seus céus tingidos em um tom azulado e a luz do verão duplo-solar na paisagem cinzenta de fractais de pedras que reluziam sob a luz solar como tesouros que não foram escondidos. Lá a vida era dura, mas o calor era familiar, constante, confortava aqueles que não tinham nada senão um copo de água e alguns pães. Aqui o frio era amedrontador, desumanizava, tirava sua identidade e sobrepunha sob seu rosto apenas a marca da sobrevivência. O frio era um inimigo sem rosto, um adversário que ria a cada rajada de vento.
Continuou andando, puxando mais uma vez o capuz para que cobrisse mais seu rosto, como se isso pudesse proteger as partes expostas de sua memória. Fechou os olhos por um instante e pôde ver tudo que sempre sonhou e alcançou em sua terra natal, da última vez que estivera em Vulcânia. Laboratórios. Instrumentos espalhados como cadáveres. Palavras de alerta que ele ignorou, “Você não entende, Willian. Não entende o que está carregando.”, eles diziam. Ele entendia, agora. Mas já era tarde demais.
Olhou para cima e contemplou Althara, cheia e imponente, irradiava uma luz prateada pelas planícies de neve azuis. Ele se forçava a caminhar, um passo de cada vez, repetia para si mesmo quando notava que não havia nada além de montes de neve, ventos cortantes que uivavam e formações rochosas ao horizonte que se erguiam como lápides de um cemitério esquecido. Aquele vazio, aquela ausência de vida, tudo parecia ser uma tentativa de Destino em caçoar de sua situação ultrajante. Uma piada cruel que o universo decidira contar a ele e, naquele momento, parecia que somente a ele.
Os ventos sopravam mais forte, como se quisessem puxá-lo do chão e levá-lo consigo. Mas Willian fincou o cajado na neve e continuou a andar, respirando fundo. O ar congelante queimava as suas narinas, arranhava sua garganta como cacos de vidro. Ainda assim, ele continuou. Não havia outra escolha.
O templo precisava estar próximo, em algum lugar. Ele sabia disso, mas a dúvida ricochetiava em sua cabeça a cada passo, pois sentia-se distante, cada vez mais distante. O que faria se não estivesse próximo do templo? Se fosse tudo em vão?
Continue andando. Um passo de cada vez, ele repetia a si mesmo. Talvez fosse sua mente brincando com ele, talvez fosse um desejo verdadeiro de sobrevivência. Era um comando, quase uma ordem, e ele obedeceu, embora cada um dos seus ossos gritasse pelo contrário.
Ele quase se arrastava pelo chão, contendo sua vontade de urrar de dor por seus ferimentos e se colocando a andar até o primeiro sinal de civilização que notasse aonde quer que fosse.
A paisagem se tornou monótona por tempo demais, os ventos eram sempre os mesmos e à neve rodopiava sempre em mesmos movimentos. O azul gélido em meio à escuridão começava a irritá-lo, fazia seus olhos arderem e em seu corpo emergia a vontade de gritar a cada passada.
Então ele viu.
Enorme, o Templo da Sangria erguia-se alto e imponente com sua arquitetura brutal. Seus formatos retangulares, que, aos poucos diminuíam de tamanho e lhe conferiam um aspecto triangular que gradualmente ficava pontudo traziam um ar intimidador e impositivo, comprido, tão comprido que a névoa era capaz de cobrir suas pontas e deixá-las invisíveis ao olhar humano, como se a construção cortasse o céu em um traço determinado.
Willian parou. Sentiu um aperto em seu corpo, algo inominável que o fazia parar devido à agonia. Não era emoção, era muito mais profundo, muito mais selvagem.
Suas vestes ainda dançavam ao som do vento em um baile desamparado e frenético enquanto o homem dava passos desajustados e doloridos em direção ao templo, cada vez mais exausto. Até que então tropeçou em seus próprios pés e teve a queda amortecida pela neve que era puxada de um lado para o outro pelos ventos. Seus joelhos falharam, bambos, a neve queimava sua pele com sua textura gélida. Willian mordeu o lábio, tentando se erguer, mas seu corpo não o obedecia, não conseguia continuar o caminho. Não mais.
Ele então se arrastou.
Quase sem controle de seu próprio corpo, ele cravava as mãos na neve e puxava seu corpo com um leve impulso das pernas. Um passo de cada vez, ele ainda repetia. Cada movimento era uma luta vencida contra a vontade de desistir. Já fui longe demais para morrer.
O templo parecia cada vez mais distante. Ele continuou se arrastando até onde aguentou, até que sua visão, fixa em Althara, começou a se escurecer, o brilho da lua se entorpecendo, apagando-se como uma luz tênue de vela. Ele queria gritar, mas o vento, a fadiga e sua desistência apagaram qualquer resquício de sua luta.
Mãos. Ele sentiu mãos. Fortes, porém cuidadosas, ergueram seu corpo fatigado por seus braços. Ele não tinha força para lutar, muito menos para abrir os olhos. Não sabia quem o seguravam e para onde o levavam, mas, pela primeira vez em muito tempo, isso parecia não importar.
Willian aceitou o que Destino lhe reservava.
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