A Alta Fantasia e o Espelho Colonizado: Uma Reflexão Sobre Cultura Engessada e Produção Literária no Brasil
Em um país cuja fundação simbólica foi o estupro, a escravização e a catequese, pensar sobre a produção cultural — e especificamente sobre a literatura fantástica — é um assunto polêmico, divisor de águas em terras aprisionadas em uma mente conservadora, muitas vezes estetizada, mas raramente cicatrizada. O Brasil não apenas foi colonizado em sua terra, mas, mais profundamente, em seu imaginário. E talvez seja neste imaginário que se encontre o cerne da questão: por que a alta fantasia nacional não floresce com a mesma força com que florescem as importações do Norte Global?
A resposta é multifacetada, mas a primeira camada é simples: o brasileiro médio ainda carrega, consciente ou inconscientemente, o peso de uma mente colonizada. Há um impulso automático, quase reflexo, de crer que o que vem de fora é melhor. Trata-se de uma internalização de inferioridade cultural, nutrida por séculos de dominação simbólica e material. A consequência direta disso é a percepção de que a literatura nacional, especialmente aquela que se atreve a adentrar os domínios da fantasia, carece de legitimidade. Como se o realismo sujo ou o regionalismo canônico fossem os únicos territórios que nos são permitidos habitar com autenticidade.
Contudo, o problema é ainda mais profundo: a própria ideia de fantasia, tal como ela é consumida, está engessada a padrões estéticos e narrativos eurocêntricos. Quando se pensa em “alta fantasia”, o que surge no imaginário coletivo são castelos de pedra, reis e rainhas, magia celta, idiomas élficos e uma sociedade feudal estilizada — um tipo de estética que pressupõe, como legítimo, o modelo europeu de organização social. O feudalismo é romanceado, e não criticado. A nobreza é idealizada, e não desconstruída. A magia é branca, ariana, normatizada.
Nesse contexto, quando surge uma fantasia que se ancora em mitologias afro-diaspóricas, em cosmologias indígenas ou em visões de mundo não-hegemônicas, o estranhamento é quase automático. Não por falha estética, mas porque o público foi ensinado — através de um currículo colonizado, de um mercado editorial colonizado e de algoritmos globais colonizadores — a reconhecer apenas o padrão europeu como “fantástico”. O diferente não é apenas estranho: é descartável.
Há também o paradoxo trágico do escritor nacional que, desejando participar do jogo da fantasia, copia os moldes europeus, mas sem as ferramentas críticas necessárias para manipulá-los. Isso não é fruto de ignorância individual, mas de um abandono sistêmico da formação intelectual ampla. Assim, proliferam-se narrativas em que duques coexistem com lordes e cavaleiros em estruturas anacrônicas e híbridas, mal compreendidas, mas apresentadas como “alta fantasia”. O problema não está na hibridização em si — que pode ser riquíssima — mas na ausência de consciência crítica sobre os próprios instrumentos de construção.
Quando um autor brasileiro tenta romper com esse paradigma e cria uma fantasia realmente autônoma, descolonizada, que escapa do feudalismo mágico de Tolkien ou da fantasia urbana higienizada de Sarah J. Maas, ele se vê frente ao muro invisível do mercado. Editoras, guiadas pelo lucro e pela previsibilidade, preferem investir em modelos testados. Por isso é que obras que reafirmam a ordem vigente, como Crepúsculo ou É Assim Que Acaba, não apenas vendem bem, mas se tornam alicerces ideológicos da normatividade. Não são só histórias: são catequeses emocionais.
Essa engrenagem ideológica é fortalecida por um sistema algorítmico que privilegia a distração e a passividade. O autor que exige reflexão crítica, que trabalha com densidade simbólica ou com posicionamentos políticos fora da curva liberal, se vê excluído do ciclo de viralização, afinal, quem irá preferir ver dez minutos de um vídeo politizado quando pode ver trinta segundos de uma trend viral?
A lógica do mercado exige que o artista também seja influenciador, que sua obra seja produto, sua fala seja palatável e sua identidade seja vendável. E quando não é — seja por convicção, seja por linguagem, seja por recusa —, a máquina o silencia.
Essa marginalização não é acidental. Ela é estrutural. O silenciamento de vozes dissonantes — comunistas, antifascistas, afrocentradas, ameríndias — é necessário à manutenção de uma indústria cultural que vive da homogeneização estética e da neutralização política. Ao contrário do que se propaga, o mercado literário não é um território neutro: ele é um campo de disputa ideológica feroz, e o que se publica, se divulga e se vende está sempre carregado de mensagens. A suposta “neutralidade” é, em si, uma postura ideológica — e uma das mais perigosas, pois se disfarça de imparcialidade.
Vivemos, pois, em uma era de analfabetismo funcional não apenas no plano textual, mas no plano simbólico. O público consome histórias que, muitas vezes, reforçam a própria lógica de sua dominação, sem ter ferramentas para perceber e discernir entre o moral, o emocional e o político. E os poucos que tentam produzir resistência, se deparam com a indiferença institucional e com a apatia popular.
O que resta, então? Resta a insurgência estética. Resta criar mundos não apenas como fuga, mas como ataque. Resta narrar mitologias marginais não para agradar o centro, mas para desestabilizá-lo. Resta, enfim, escrever fantasia como quem escreve manifesto — com a consciência de que todo mundo é político, e que todo silêncio é uma escolha.
Ficção também é trincheira. Escreva política. Radicalize-se.
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