Cento e Vinte Passos na Penumbra - Capítulo 1
O cheiro estava impregnado pelo quarto inteiro, forte e ardido. Parecia incenso, talvez ervas queimadas, mas não soube reconhecer do que se tratava aquelas fragrâncias tão amargas, porém ledoras do alívio.
E enquanto isso, seus olhos se abriram lentamente, captando, de início, somente a luz azulada do céu de amanhecer, ainda escuro, mas em Kalasch os dias não eram claros. A luz atravessava uma cortina espessa, num tom marrom escuro e seu tecido balançava lentamente devido à brisa gélida que atravessava as grades da janela pela pequena abertura do vidro, que permanecia quase fechado visto que o hóspede ainda não havia acordado plenamente, suscetível ao frio e ao ardido da topaíta, embora naquele dia, a topaíta fosse menos espessa.
Willian finalmente acordou, mexendo de leve os dedos das mãos, antes formigantes. Ele respirou fundo, como se acordasse do sono profundo. Ergueu as pálpebras e contemplou um sacerdote acendendo velas de perfume adocicado, mas ainda de essência ardida. O sacerdote se virou de leve, acendendo um incenso e queimando algumas ervas. Era dali que surgia o cheiro.
Ele fixou os olhos no sacerdote, ainda zonzo. O sacerdote andou dois passos pequenos à sua direção, ainda distante o suficiente para que Willian não enxergasse seus olhos devido à visão ainda turva. O sacerdote se retirou do quarto e disse algo a alguém que passava pelo corredor, algo que Willian não soube discernir ou ao menos processar as palavras ouvidas.
Apagou de novo, o cheiro das ervas queimadas ainda rodopiando pelo seu quarto, atraído por sua respiração e pousando em seu rosto, junto à fumaça, o alívio de sua dor.
Acordou novamente quando sentiu a palma de alguém pousar sobre sua testa, quente e macia. Abriu os olhos, vendo a beleza kalaschiana em sua essência; um rapaz esguio de linhas faciais retas e seus cabelos albinos presos em um coque. Ele olhou-o de volta, sorrindo de forma carinhosa. Willian se assustou com a expressão do rapaz, tão genuinamente gentil que se tornava suspeita.
O rapaz estralou os dedos próximo de seus ouvidos, examinava a audição de Willian, que permanecia intacta. Depois passeou com o dedo acima de seu nariz, movendo-o de um lado para o outro após pedir que Willian seguisse a movimentação com os olhos. Intacto também. O rapaz piscou algumas vezes e sorriu mais uma vez.
“Você está bem.”, ele dissera, segurou sua mão com força, ajudando-o a se erguer, “Kalasch costuma fazer isso com quase todos.”, complementou, dando um sorriso carinhoso. “Veio de… Vulcânia?”, ele questionou, Willian sentava-se na beira cama, esfregando o rosto dolorido e xingando de dor ao raspar a unha em uma ferida na maçã do rosto. O rapaz repetiu a pergunta, parecia honestamente interessado.
“Não.”, Willian respondeu. “Vim de Barithael.”, sua voz estava rouca, o som proferido ardia em sua garganta, como um pigarro que impedia a voz de sair.
“Ah!”, arfou.
Willian não sentiu raiva. Ele passava por isso o tempo inteiro. Vulcânia era um território mais ao norte, no centro do Plano, uma terra quente e árida, repleta de vulcões. Seu pai veio de Vulcânia, isso era fato, o formato de seus olhos, grandes e redondos, somado ao tom de sua pele, um marrom retinto, dava sempre a entender que era de lá por si só – mas tudo era estragado quando viam a praga. Mas Willian havia nascido e crescido em Barithael e, embora convivesse com o frio, ainda sofria com ele, principalmente em Kalasch.
Estava vivo, mais uma vez. Conseguira vencer a morte mais aquele dia. E precisava fazer algo com isso, não havia tempo para se lamentar pela praga ou para se recuperar. Estava naquele templo de Lexov para deixar um legado. Alcançar seu sonho de ter seu nome em algo, de ser lembrado.
O rapaz continuava perseguindo-o com os olhos, avaliando cada movimento sutil que ele fazia. Ele empinou o queixo fino e dissera: “Qual é seu nome? Os auxiliares estão se perguntando isso desde que encontramos-no.”
“Willian.”, respondeu, levando o indicador até a ponta do nariz, gélido, para ver se ainda estava são. “Willian Veldorf.”
“Prazer.”, o rapaz estendeu a mão para Willian em um gesto calculado e quase recolheu-a ao notar que o homem à sua frente hesitava. De último instante, Willian acertou o aperto de mão e piscou enquanto assentiu uma única vez e firmemente. “Sirien.”, ele acrescentou. “Acredita na Sangria?”, ele perguntou. Aquelas perguntas eram padrão aos viajantes que se hospedavam no templo.
A Sangria tinha como princípio a humildade e gentileza entre irmãos, isto é, outros praticantes da fé de Kumaagala. A estadia não era gratuita, nada era. Por isso, Willian respirou fundo e disse: “Sim.”, embora ele não fosse o mais fidedigno praticante. Willian não praticava nada, pelo contrário, nutria aversão por certas superstições que acometiam Barithael.
“Bem, o café será servido ao som dos sinos.”, disse Sirien. “Compareça, se almejar.”, ele completou, se retirando do quarto e andando pelo corredor, seus passos ecoando.
Willian ajeitou-se na beirada da cama. Aguardou o homem sair de seu quarto e a porta ranger em seu fechar. Ele observou sua mão direita, a praga se alastrando em sua pele de maneira lenta, porém ardente. Respirou fundo a fumaça ardida. Parecia que a cada respiração a dor diminuía.
Ele se ergueu com cuidado da cama e andou até um espelho próximo. Então viu. A praga ainda corria debaixo de sua pele, os vermes, crescentes, assíduos em se multiplicar e tomar sua pele até sua morte, uma morte lenta e dolorosa. Seus olhos ardiam com a fumaça das ervas queimadas, mas a dor dos vermes estava amenizada, estável.
Um lado de seu corpo estava consumido pelos vermes-de-lava, chamados assim por sua ardência, pela corrosão provocada à pele. Ele olhou sua palma direita e observou o relevo ardente, os movimentos sutis, tão sutis que quase imperceptíveis. O relevo se espalhava por seu braço inteiro, por seu tronco em partes e até o joelho direito, embora não fosse visível, por estarem cobertos pelas vestes, mas ainda doíam. Seu pescoço estava começando a ser atacado pelos vermes, podia-se vê-los como tentáculos o escalando em uma briga.
Quando os sinos soaram, Willian percorreu o templo, perdido. Andou alguns corredores, seguindo o fluxo dos sacerdotes e auxiliares, mas sempre acabava se perdendo pois, aparentemente, os sinos indicavam não só o café, mas também diferentes rotinas.
Ele havia se perdido outra vez após seguir alguns funcionários. Então tomou coragem e se aproximou de um rapaz que andava rapidamente pelo templo, precisava ser orientado, buscar informações. Ele o chamou algumas vezes, “Ei, moço.”, ele chamava, mas aparentemente era ignorado.
Ele seguiu o fluxo até um enorme salão de teto abobadado. Haviam oito vitrais, cada um em uma das faces do octógono que formava o salão, braseiros eram colocados estrategicamente próximos dos pilares que dividiam as faces do salão. O teto era repleto de detalhes meticulosamente esculpidos em detalhes ao passo que o chão era desenhado em ardósia e mármore com padrões claros e escuros alternados.
Willian olhou para todos os sacerdotes que ali jaziam, ajoelhados no chão, vestindo túnicas grossas de capuz escuros e largos. Eles permaneciam olhando para o chão enquanto a reza procedia, vinda de um homem alto e grisalho, de barbas longas e voz grave. Ele continuava a reza em algum idioma antigo, o qual Willian sequer entendia uma unidade de palavra apenas. Ele se aproximou, aguardando a reza finalizar, o que não demorou muito, e andou até o primeiro sacerdote que viu, buscando informações.
Ele deu alguns passos em direção a um rapaz encapuzado, mas conseguiu ver seus olhos, opacos, esbranquiçados e sem visão. Ele teve ajuda para se erguer e então seguiu os outros dois que o guiaram. No fundo do capuz, Willian viu os cabelos platinados e levemente ondulados, presos em um rabo de cavalo baixo, haviam algumas tranças, algumas contas e miçangas. Willian chamou: “Com licença.”, mas desistiu ao notar os olhares de julgamento.
O senhor que procedia a reza andou até Willian, seu semblante era cansado e mal humorado, mas ainda tinha um pouco de calma guardada. “Período de kach'de. Eles não irão te responder.”, ele falou, notando a decepção no olhar do homem, somada à confusão, que emergia aos poucos.
“Não era… mês que vem que começava?”, Willian indagou, parecia se dar conta da pergunta estúpida que havia feito quando viu o olhar de julgamento do senhor.
“Você deve ter perdido a noção do tempo em sua… caminhada.”, dissera ele, se virando e retomando sua posição como alto sacerdote.
Willian permaneceu parado por alguns instantes, suas sobrancelhas cerradas expressando um misto de confusão e indignação. Os olhares dos sacerdotes pousavam nele, mas não ousavam se fixar, sempre efêmeros, porém ainda desconfortáveis. Aquele silêncio após a reza o irritava, era denso, parecia esvaziá-lo.
Ele desviou o olhar para o chão, buscando algum refúgio na ardósia e seus padrões estampados frios sob seus pés. Respirou fundo, observava de cima a baixo o salão, via os pilares, o piso, os braseiros e até os vitrais. Era tudo tão belo, embora efêmero e isso o assustava, afinal, tudo aquilo que ele via não passava de matéria, de pedra em seus diferentes estágios da manufatura humana. Tudo que era feito estava fadado a ser destruído – e Willian tinha a crença que, embora deturpada, ele repetia a todo momento: Feito pelo humano, portanto, destruído pelo mesmo também.
Willian, sentindo o constrangimento impregnar na pele, andou até um pilar e se apoiou nele, observando o fluxo dos sacerdotes, auxiliares e até viajantes. Seus olhos caíram para suas mãos enluvadas e logo pousaram em seus pés doloridos do dia anterior. Então algo interrompeu seus pensamentos. Um toque no ombro. Que o fez erguer a cabeça de abrupto e observar Sirien e seu semblante quase místico de tão anguloso e simétrico.
Os olhos de Willian foram levados até o sacerdote de visão opaca. Ele se retirava do salão junto aos outros. Tudo aquilo era realizado em silêncio. A custa de quê?, se perguntava Willian, mas preferia não questionar muito mais do que já questionava, portanto sequer elaboraria uma hipótese.
“Estrangeiro, venha comigo.”, dissera o jovem de cabelos presos. Sua presença era fantasmagórica, talvez devido à sua palidez lânguida ou sua voz que soava silente, com um tom taciturno e talvez séria demais.
Willian parecia surpreso ao ver Sirien ao seu lado, ele fazia um gesto para que seguisse-o, e Willian, que parecia mais perdido que formigas levadas pelo vento, silente, seguiu-o pelos corredores frios e tingidos em um tom também lânguido de azul, variando de cianos à azuis profundos. A atmosfera monocromática do templo começava a irritar Willian também. Talvez Willian estivesse muito irritado e tudo ao seu redor era suficiente para desconcentrá-lo.
Caminharam até um salão menor que o anterior. Ali havia bancos simples e três mesas redondas, além de uma poltrona abaixo do vitral, que tinha um tom marrom, mas era tingida pela luz que variava de azuis à vinhos e carmesins do vitral. Sirien indicou que Willian se sentasse em um banco e andou até a bancada no canto da sala, trazendo uma vasilha de conteúdo alaranjado e fumegante. De lá, Willian já sentia o cheiro do caldo terroso, certamente produto de algum tubérculo, devido a sua textura cremosa que respingava da vasilha cheia, transbordando, conforme o andar de Sirien. Quando Sirien deixou-a sob a mesa, Willian pôde notar alguns cogumelos entre o caldo opaco, além de pequenas folhas verde-musgo, raízes e ervas.
“Refeição dos viajantes.”, disse apenas, antes de se afastar e pegar um copo de pedra sob a bancada, enchendo-o com a água de um jarro de vidro ornamentado. Ele andou até Willian novamente e deixou o copo ao lado da vasilha, parou ao seu lado, como se esperasse o primeiro gole do caldo.
Willian observou a vasilha e o copo, a fumaça subia tímida conforme o caldo esfriava. Olhou o conteúdo do copo e da vasilha, de um para outro, tentando averiguar o que transpassava aquele prato que parecia mais com terra e água com alguns cogumelos. Talvez fosse somente uma comida simples, honesta, que não lhe seria dada por mérito algum, mas por um sentimento de misericórdia. Tomou coragem e, com as duas mãos, pegou a base da vasilha e levou-a até os lábios, apreciando o calor que lhe alcançou os lábios em um toque singelo. Era ardido, talvez por conta das raízes que mastigava, depois bebendo mais um gole e mordiscando um cogumelo borrachudo. Sirien permanecia parado, observando com certa frieza até que Willian ergueu os olhos para ele e então Sirien indicou que iria se retirar.
Willian precisava esclarecer dúvidas, portanto, chamou-o, quando ele já estava de costas, quase atravessando as portas da sala que se encontravam. “Quem é o cego?”, indagou, Sirien ergueu uma sobrancelha, confuso.
Sirien raciocinou por alguns segundos, hesitante em responder. Ele respirou fundo e apertou os lábios, olhando o homem à sua frente. “Um dos mais antigos em votos. Um dos mais novos em idade.”, respondera, um sorriso breve emergindo em seu rosto. Ele deu uma risadinha ao notar que nada daquilo explicava o que Willian queria saber. “O nome dele é Ofélio.”, completou.
Willian parecia confuso. “Não sabia que aceitavam deficientes no sacerdócio.”, comentou, dando mais um gole no caldo e suspirando ao contemplar o calor em seu estômago.
“Ah, isso não é uma preocupação. Ofélio é um bom moço, jamais julgaríamos a capacidade de um devoto com base nos atributos físicos.”
Um momento de silêncio se deu, Willian bebia o conteúdo da vasilha como quem não comia há dias. Era fato, ele estava com fome e não comia há dias.
“Fazia muito tempo que não frequentava os templos.”, comentou Willian. “Sequer me passou na cabeça que estávamos em período de Kach’de.”, Willian deu mais um gole no caldo quando notou que Sirien não respondê-lo-ia. “Por que você não está fazendo parte?”
“Ah, quatro meses de silêncio, jejum e entrega não me caem bem.”, brincou. “Participei do Kach’de ano passado e retrasado. Esse ano preferi me abster.”
Willian assentiu, mastigando um cogumelo. “Claro.”, dissera depois que engoliu.
Então Sirien assentiu uma vez e de forma firme, se retirando da sala e deixando Willian a mercê de sua mente mais uma vez. Ele observava as espirais preguiçosas de vapor úmido e quente sobrevoando no ar próximo à vasilha e, após beber todo o conteúdo da tigela, ele se ergueu do banco, devagar, com cada músculo seu reclamando do esforço, sua pele ardendo com os vermes agonizando ao movimento.
Willian voltou ao seu quarto, e quando chegou, a primeira coisa que fizera fora pegar seu caderno de capa de couro e sentar-se em uma cadeira próxima a quina do quarto, onde jazia uma mesa encostada na parede. Ele abriu as gavetas da mesa e avistou um lápis surrado, porém suficiente para o que planejava.
Abriu o caderno e vira seus desenhos. Dedicara até então alguns meses de estudo sobre algo que o fascinava: mnyesas.
Os desenhos se espalhavam pelo caderno, as criaturas semelhantes à centopéias gigantes que viviam em túneis na terra, ganhavam ilustrações de cada um de seus metâmeros e cada pata ou antena sua. Willian folheou as páginas enquanto se recordava de cada vez que tais animais foram trazidos mortos para que ele analisasse suas carcaças, seus exoesqueletos de placas quitinosas, suas forcípulas ou suas glândulas ventrais.
Ele olhou as anotações de semanas passadas, algumas ainda de quando estava em Barithael. Havia partido para Kalasch quando notou que somente as carcaças não seriam suficientes. Ele precisava vê-las vivas e em seu hábitat natural, em seus túneis em meio à topaíta que se liquidificava com o calor, ou então saber se elas eram quentes quando vivas.
Willian passou os dedos sobre os desenhos, sentindo o relevo de trás da folha como também da frente, desenhos nervosos de linhas marcadas pelo grafite pressionado com força. Tivera que aprender a escrever com a mão esquerda, já que sua direita estava consumida pelos vermes e doía para escrever ou desenhar e isso deixava os primeiros desenho do caderno levemente distorcidos, trêmulos. Aquilo não passava de uma tentativa de entender aquelas criaturas que pareciam deslizar entre o vivo e o morto, vivendo debaixo da terra, aguardando por suas presas e possivelmente, guardando entre suas placas uma anestesia para a dor dos vermes.
Virou mais algumas páginas, buscando folhas livres para esboçar ideias, porém, seus olhos caíram em um desenho das glândulas ventrais da mnyesa, um órgão ocupado pela secreção viscosa que revestia o corpo do animal. Ele havia notado aquilo em todas as carcaças que teve acesso, uma glândula supostamente capaz de expelir substâncias que endurecera nas partes mais vulneráveis, supostamente dito já que Willian nunca conseguiu concluir se aquela substância era de fato expelida por tais glândulas e como ela era, mas estava certo de que mnyesas apresentavam algo semelhante a uma segunda carapaça somada a uma troca de pele, porém, com uma textura diferente da quitina que compunha as placas principais. E tudo aquilo o intrigava, principalmente sobre o que dizia respeito à resistência daquela segunda placa à corrosão da topaíta do solo.
Willian não sabia do que se tratava a acidez dos vermes-de-lava que habitavam sua pele como um bicho-geográfico porém ardido e quase que inteligente, capaz se de multiplicar tantas vezes que torna-se impossível uma vida sem eles, já que, embora fossem retirados periódicamente, os fragmentos deixados abaixo da pele sempre voltavam a crescer. Ele sabia que a praga se alimentava de seus tecidos, se penetrando entre o músculo e a pele, assim com sabia que em casos avançados, os vermes se alojavam em músculos mais interiores, como o miocárdio ou mesmo próximo ao fígado. E, embora Willian negasse com afinco, ele sabia que sua obsessão pelas mnyesas se dava por um sonho: o sonho de parar de sentir dor a cada movimento e, acima de tudo, deixar de ser visto como nojento ou repugnante pela sociedade.
Acreditava que naquela substância havia algum efeito anestesiante, algo que promovia alívio à ferida de topaíta, talvez até de eliminar aquela praga horrenda. E talvez aquilo fosse a resposta, nenhum remédio mais surtia efeito como antes e a infecção sequer estava em seu estágio mais grave, entretanto, ardia. Ainda tinha crises vez ou outra, momento que não conseguia se mover da cama mas também não conseguia dormir, como também os banhos se tornavam dolorosos independentemente da temperatura e a vida tornava-se um martírio. Momentos este que Willian somente desejava a morte.
E ele sonhava pelo momento que a dor não seria mais um problema.
Willian puxou o caderno mais para perto da visão e, com o lápis, anotou pensamentos soltos. “Função regeneradora ou anestesiante?”, ele escreveu em garranchos, depois tamborilando o lápis contra a página, seus olhos fixos em algum ponto distante, que transcendia o físico pois olhava muito mais fundo do que aparentava ser somente o caderno.
“Para entender a secreção, preciso das mnyesas vivas... observar suas reações no ambiente natural... ver como enfrentam a topaíta em estado líquido... ver se há defesa ativa..."
A ideia o excitava e o inquietava. Era perigoso. Ele sabia. As mnyesas não eram apenas um objeto de estudo; eram lendas vivas de Kalasch, temidas e respeitadas por sua letalidade.
Mas a dor pulsante em sua pele era um constante aviso de que não tinha tempo. Se havia algo a ser feito, precisava fazê-lo agora, antes que ficasse pior.
O que mais tinha a perder?
Fechou o caderno em um estalo seco, deixando-o sob a mesa. Ele ergueu-se da cadeira, sua perna direita latejante junto ao tronco. Caminhou até a janela embaçada do quarto, o vidro agora completamente fechado, mas ainda frio, embaçado, filtrava a luz seca e fria da manhã kalaschiana. Puxou a manga e esfregou o vidro, vendo através do pequeno espaço onde não jazia vapor o longe horizonte de neve manchada de poeira, topaíta e sujeira, além das formações rochosas de onde, segundo ouvira nas tabernas que visitou antes de se ver sozinho, que era de lá que saíam mnyesas.
É ali que preciso estar.
A ideia começava a se formar em sua mente. Financiado pela universidade de Lexov, acolhido pelo templo, teria as ferramentas necessárias. Teria o templo como um refúgio ou um espaço para planejamento. Mas as respostas estariam na terra, no frio e no ventre hostil de Kalasch. Aquele ciclo de dor poderia ter um fim.
Willian se afastou da janela e seus pensamentos foram interrompidos pelo som distante dos sinos do templo, mostrando que um novo ciclo se iniciaria, outra etapa do dia no templo. Ele sabia a verdade: Nenhuma conquista viria para ele sem um sacrifício.
Se o sacrifício seria sentir frio em tocas ácidas, Willian não se importava.
Precisava conseguir autorização, talvez financiamento ou ao menos alguma ajuda da Universidade. Talvez assim, e só talvez, pois ele tinha medo de criar expectativas, poderia transformar o pouco de vida que lhe restava no legado que ele tanto sonhava.
Comentários
Postar um comentário